Os Traumas e as Elaborações Possíveis em Nossa Época

No início do século passado, os traumas geralmente eram decorrentes de conflitos e de desejos; entre eles, os sexuais e outras situações fantasiosas, que causavam culpa e constrangimentos. Muitas vezes, esses desejos não chegavam a ser realizados, mas por serem considerados proibidos e repudiados confluíam para patologias, que eram tratadas como doenças orgânicas.

Com o surgimento da psicanálise, os sofrimentos foram compreendidos como decorrência de construções subjetivas, isto é, de causa psicológica e, independentemente de o fato ter acontecido ou não, passaram a ser motivo de tratamentos psicológicos.

Hoje, o enfoque desses tratamentos além das fantasias subjetivas, considera também o papel que a realidade externa ocupa na vida das pessoas, tanto pela influência que exerce na estruturação da mente humana, quanto no encontro do psiquismo com os acontecimentos de toda ordem.

No convívio com o mundo externo, as pessoas geralmente se utilizam de mecanismos psicológicos para compreender e elaborar o que está ocorrendo.  Entretanto, com o advento da evolução tecnológica e a globalização, o mundo se tornou muito próximo ao entrar no dia a dia da vida das pessoas. A proximidade oportunizada pelos meios de comunicação entre continentes, países e populações, permanentemente e em tempo quase real dos fatos e acontecimentos, sejam eles singelos aos mais agressivos e inimagináveis, nem sempre são possíveis de serem elaborados.

Embora esse progresso traga um legado positivo, pois vem ampliando o conhecimento e o desenvolvimento humano, e tudo o que acontece pode pertencer a cada um e ao mesmo tempo a todos, são os fatos negativos que exigem um esforço maior para a compreensão dessa realidade ampliada e global.

De alguma forma, tudo atua sobre todos, isto é, um mundo que muda a todos muda também. E assim como desperta curiosidades, oportuniza o novo, oferece alegrias, também espalha os sofrimentos. Nessa realidade atual, existem possibilidades onde cada um pode contribuir pelos mais diversos motivos e meios e fazer a diferença ou permanecer oculto, evitando participar e se inteirar sobre o que está acontecendo.

Como uma tarefa nada fácil, em um tempo em que as mudanças se processam em alta velocidade, os conflitos também se intensificam e, compreender sem se envolver ou sem se traumatizar com a intensidade e gravidade dos fatos, exige que cada indivíduo busque meios e alternativas para conhecer e administrar seu mundo psicológico interno e o externo e ser feliz.

Entretanto, o que se acompanha na clínica psicológica são queixas relativas às dificuldades para se adequar aos novos tempos. Tanto as gerações mais jovens, que nasceram no final do século passado ou nesse século, que dominam muito bem os recursos atuais da tecnologia, como as dos adultos maduros que acumularam experiências e enfrentaram desde guerras até inúmeras exigências de sua época, reagem perplexos, quando não traumatizados, frente a adventos de grandes intensidades que marcam nossos dias. Desses, pode-se destacar, pela sua abrangência, os recentes atentados terroristas, as grandes tragédias como incêndios, terremotos, guerras, perseguições, mortes em massa, assassinatos, feminicídios, tráfico de pessoas, comércio de emigrantes, a violência econômica sobre os desfavorecidos e tantos outros fatos.

Nessa ciranda o que vai determinar a psicopatologia numa população é a intensidade dos acontecimentos e das experiências que excedem a capacidade de assimilação e elaboração mental. O trauma se estabelece como um corpo estranho infiltrado na psique, que causa danos importantes e muitas vezes devastadores, deixando um rastro de depressão, de vazio, de falta de sentido existencial e solidão.

Mesmo que o ser humano esteja preparado para enfrentar desafios desde o nascimento até a morte, é necessário o desenvolvimento de outros mecanismos e capacidades para a elaboração dessa realidade, como, por exemplo, a resiliência, que permite sobreviver aos traumas.

A resiliência, termo advindo do latim, alude à capacidade humana de resistir (re-existir) frente a grandes traumas, conservando e reconquistando atributos originais de saúde mental.

Isso ajuda a entender o porquê algumas pessoas passam por tragédias e se refazem, enquanto outras não conseguem seguir adiante e adoecem, se deprimem e não encontram mais sentidos existenciais.

Sabe-se que cada pessoa pode encontrar poder para pensar o impensável, seja através de recursos próprios ou seja através da ajuda, considerando que o trauma ocorre pela impossibilidade de ser representado, isto é, simbolizar a experiência emocional despertada. Por isso, torna-se importante, nesses casos, a pessoa evitar o isolamento pelo medo e angústia de não saber como lidar com suas emoções.

Buscar meios para falar, escutar, pensar, compreender, ouvir outras pessoas, até mesmo um profissional, são recursos que auxiliam a colocar em ordem o que está confuso e elaborar os traumas de nossa época, sem ter que lançar mão às drogas, ficar anestesiado pelo sentimento de que nossa época está perdida, isolar-se atrás de redes virtuais, em um esquema baseado em curtidas, desmentidas e anonimatos.

Esses recursos podem gerar o desaparecimento, por exemplo, do erotismo, no sentido de ser uma energia para trocas de afetos e amor. Tudo o que tem a ver com o cibernético, pode gerar uma espécie de anestesia dos sentimentos em favor de um culto à proteção ao narcisismo e ao medo da desaprovação.

O chamamento aos velhos e conhecidos sentimentos elementares ainda é a receita certa, como cultivar a empatia, prestigiar os vínculos de amor, treinar a tolerância, os afetos prazerosos, o companheirismo e a solidariedade humana, seja com a sua família, na cidade de cada um, em seu país ou junto aos cidadãos do mundo. Afinal, a globalização e a virtualidade também permitem espalhar o amor e este é o principal auxilio para a elaboração dos traumas de nossa época.