Memórias – Início da Vida – Parte 1

Estamos nos tornando uma sociedade na qual quase todos os indivíduos estão atingindo idades muito mais avançadas do que em algumas décadas passadas, entretanto, sabe-se que para alcançar a longevidade com saúde, em especial, a emocional, exige consciência e participação.

Cada pessoa participa no mundo à sua maneira, construindo sua história e consequentemente sua memória, considerada um patrimônio existencial único. Poder retomar as lembranças dessa caminhada, principalmente para aqueles que estão na segunda metade da existência, pode se tornar um recurso significativo, tanto pela descoberta da sua identidade pessoal, como a social.

Estudiosos, como Israel (1988), ao descreverem a importância da memória, afirmam que ela não é uma função isolada e independente, mas o resultado da motivação, da afetividade e das emoções vivenciadas, demarcadas por atividades e atitudes em um tempo e um espaço real, registrados cognitivamente e significados psicologicamente.

Outros, como Acrich de Guttmann (1993), partem da ideia de que a memória mantém o conhecimento do passado e é importante para a interpretação do presente e a predição do futuro. Sem dúvida, afirmam que a memória é o bem mais precioso de uma pessoa. Ela determina a identidade, a percepção e a interação com o meio. Ela também está na base das respostas motoras fundamentais, como caminhar, e até em atos intelectuais complexos, necessários para manter a autonomia e independência.

Para o psicanalista Rolla (1991), ao considerar as dificuldades de memória no envelhecimento, afirma que a maioria dos adultos maduros que buscam os consultórios não está doente fisicamente, e sim, evolutivamente, isto é, com prejuízos na capacidade para novas aprendizagens. Salienta que a interrupção do processo evolutivo ocorre quando não há integração, através da memória, das etapas passadas com aquela que a pessoa vivencia atualmente, quando não faz novas aquisições e não usa a memória para transmitir o seu conhecimento para outras gerações.

Como um instrumento importante para se identificar a saúde ou possíveis patologias que indiquem deterioração ou declínio da memória, Salvarezza (1990) considera que as reminiscências, além de cumprirem propósitos consciente e inconscientes, também informam ao profissional sobre a saúde de uma pessoa. Entende que, através da autobiografia se conhece a história do paciente, os seus recursos psicológicos, assim como os aspectos psicopatológicos. Assim sendo, as reminiscências podem ser um poderoso instrumento para o trabalho psicoterapêutico. Como refere a médica Ana C. Arantes (2019): “gosto de cavar as histórias como quem procura tesouros. E eu sempre os encontro.

No dia a dia, na clínica psicológica, quando as pessoas procuram por psicoterapia, estimulá-las a falar sobre como chegaram a ser o que são, torna-se um recurso muito eficiente. Muitos gostam de escutar a de si próprios, de contar suas histórias e com o passar do tempo se dão conta de que suas histórias são únicas, singulares, pessoais e construídas com muitos desafios, sofrimentos e amor. Outros, entendem que relatar ou escrever a autobiografia pode se tornar um excelente exercício emocional e, até mesmo, escrever um livro sobre suas memórias, passa a ser um projeto para toda família usufruir.

Poder lembrar fatos de suas vidas, desde muito antes da concepção, sobre seu nascimento, como era a família, em que momento de mundo estavam vivendo e que experiências tiveram, sejam elas afortunadas ou trágicas, pode se tornar um novo projeto existencial, além de um ótimo exercício para a mente.

Nos próximos meses, pretendo iniciar um projeto que conta uma história, dentre as tantas já escutadas, para dividir com os leitores nessa página de Psicogerontologia, que há 20 anos me orgulho de escrever para a Revista Rainha. Esse é um exemplo de como pode-se registrar o que foi vivido, mesmo tendo sido uma vida simples.

A história que relatarei inicia pela descrição emocionada que a pessoa faz de seu nascimento. Inicia falando que quando nasceu, era um dia de inverno, muito rigoroso e há 40 anos não acontecia tanto frio, mesmo residindo numa região da serra, no sul do país. Segundo sua mãe, quando ela entrou em trabalho de parto nevava, e era impossível se aquecer com o fogão a lenha – um recurso utilizado pelas famílias de classe média.

Naquela época, as estações costumavam ser bem definidas e o clima era fantasticamente equilibrado.

O inverno muito gelado, com geadas intensas e o vento minuano que castigava metodicamente a todos, mas a neve acontecia em raras ocasiões, enquanto que os verões eram quentes e úmidos, se mostrando generosos e apreciados pelos agricultores

Há 70 anos, os partos aconteciam em casa, assistidos pelas parteiras da vizinhança. Somente quando surgiam dificuldades, o médico era chamado. Os profissionais eram poucos em cada região e o custo de seus serviços nem sempre estava ao alcance de todos. Mas nesse dia, o parto exigiu a presença de um médico porque o bebê e a mãe davam sinais de exaustão e corriam riscos. Após muito sofrimento, às 3h30min da madrugada, nasceu uma menina, com baixo peso, mas considerada saudável. A mãe logo percebeu que seu bebê não se aquecia, e por isso procurou juntá-lo ao seu corpo. E assim foram as primeiras semanas. Ela foi ganhando peso e se desenvolvendo. Essa sensação de acolhimento e entendimento de suas limitações acompanhou essa pessoa, durante toda sua vida. Uma confiança básica de que sempre teria amparo nas horas difíceis.

A mãe contava que o baixo peso do bebê poderia estar associado a um acidente que ela sofreu, quando estava no terceiro mês de gestação, ao usar o vaso sanitário. Este rompeu-se, tendo ela ficado várias horas num ambiente pouco higiênico, perdendo muito sangue, até ser socorrida. Após o atendimento, foi envolta em esparadrapos, ficando durante quarenta dias imobilizada. Lembra que o médico a tranquilizou dizendo que os ferimentos e a criança eram duas coisas separadas, que a gestação seguiria seu rumo.

E assim, descreve como sua vida iniciou, tendo que enfrentar desafios desde muito antes de nascer, e que perduraram em sua vida, com repercussões, não só físicas, mas também emocionais.

Nos primeiros anos de sua infância, descreve como foi tomando consciência de que fazia parte de uma grande família, com muitos irmãos, e de que fazia parte  de um país chamado Brasil, quando foi para a escola.

Seguiremos no próximo mês.