Nos capítulos anteriores foi abordada a importância de estimular a memória através de rememorações sobre a própria história. Foi referido que se encontrar com os momentos vividos, sejam eles felizes ou não, se torna um instrumento importante para elaboração de emoções primitivas e exercita o pensamento e diversas outras funções importantes para manutenção da saúde mental na longevidade.
Todas as pessoas têm uma história de vida, seja ela especial ou singela, dependendo de como cada sujeito a compreende, valoriza-a ou não. Muitas vezes, é alguém de fora que a considera digna de ser registrada e a imortaliza de diferentes maneiras a partir de relatos escrito ou falados, dos exemplos transmitidos, dos afetos despertados, da criatividade e contribuições para a sociedade e outros tantos meios. Por outro lado, existem vivências que, pela pouca importância dada, simplesmente desaparecem junto com a pessoa.
No artigo deste mês, seguiremos contando as memórias da Sra. B. que, com esforço, avança seus relatos sobre sua segunda infância, iniciada por volta dos quatro ou cinco anos. Ela descreve que nesse período percebeu que podia fazer certas conquistas e evoluções em seu desenvolvimento, que definiriam seu comportamento na direção da sua autonomia como pessoa.
O primeiro episódio relatado nessa caminhada foi quando a levaram para o colégio, aos quatro anos e meio, para frequentar o Jardim 1. Não havia escolinhas maternais naquela época, entretanto, esse nível de jardim proporcionava algo parecido, como socialização, disciplina, brincadeiras e exercícios de pré-alfabetização. A escola, dirigida pela competente Diretora C., considerada uma das melhores da região, oferecia uma educação ampla, que contemplava o conhecimento e os aspectos pedagógicos como um dos objetivos para educação. Ela mantinha uma farta biblioteca, com mesas adaptadas para os pequenos, jardinagem, artes, música, educação física, banda, educação cívica e atenção diferenciada para muitas outras áreas, sempre com a orientação de professores especializados.
A decisão da mãe de levá-la para a escola, muito antes da idade de sete anos, como era indicado, foi tomada em conjunto com o pai, uma vez que, naquele ano, havia sido aberto uma classe de jardim para crianças mais novas. Também acreditaram ser positivo, uma vez que suas irmãs mais velhas lá estudavam. Entretanto não a prepararam para essa decisão.
O primeiro dia em que foi para a escola permanece vivo em sua memória até hoje, após setenta anos, ao relatar, com muita emoção, o que sentiu. Lembra claramente que nesse dia sua mãe a pegou pela mão e sem muitos comentários caminhou em direção ao colégio. Não era longe, uns 150 metros de sua casa, mas o caminho parecia longo, infindável.
De vez em quando, com os olhos cheios de lágrimas, ela olhava para a mãe, que também parecia estar muito triste com aquela separação, mas seguiam nessa caminhada, como uma tarefa necessária, embora ela sentisse como algo muito maior do que sua capacidade. Por isso, após todos esses anos, ela ainda recorda, com muita dor, esse momento de separação da mãe, de ter que dividir com vários coleguinhas a atenção da professora, que parecia forte e acostumada com essas situações. Da mesma forma, ela não esquece da expressão sofrida do rosto da mãe que compreendia o esforço que ela, como criança, fazia para não demonstrar que estava com medo. Considera que esse foi um dos principais momentos em sua vida que percebeu como crescer doía.
Nos dias que se seguiram, as irmãs passaram a levá-la para escola e assim começou sua adaptação. Disso tudo, um sentimento permanece até hoje, de que as separações sempre são muito sofridas.
A entrada para a escola oportunizou muitas descobertas, principalmente que era bom ter amigos e que logo se tornou a líder para organização de jogos e disputas. Com sua personalidade sensível, mas com defesas fortes, se mostrava determinada e participativa em tudo o que era oferecido. Desta forma, foi se tornando conhecida e destacada junto aos colegas, embora fisicamente fosse muito magra, esquelética, com seu cabelo claro, olhos azuis e sardas o que a destacava no grupo. Refere que nunca foi uma criança bonita, mas era esperta. Por isso sua alfabetização ocorreu muito cedo e com orgulho exibia leituras de tudo o que via para ser elogiada pela família. Até hoje é considerada inteligente, tendo se dedicado aos estudos a vida inteira.
Os verões foram outros momentos de sua infância que permaneceram coloridos em sua memória. Sua família, após o encerramento do ano letivo, migrava para a praia permanecendo até março, quando as aulas reiniciavam.
Recorda dos dias quentes, dos cômoros de areia, do mar limpo, das grandes pescarias e a tranquilidade que uma praia pequena oferecia. Não havia energia elétrica, água potável e comércio próximo, por isso os preparativos para os 3 meses que permaneceriam eram muito bem programados.
Meses antes, seu avô, que vivia na colônia, se encarregava da carne abatida de sua criação, fazia embutidos e o restante era conservado em latões de banha, reunia ovos também da sua criação de galinhas, queijo caseiro, sacos de farinhas para a confecção do pão e polenta e aves vivas para os próximos meses.
Sua mãe gostava de levar muitos parentes para o veraneio, mesmo sendo a casa pequena e todos ficarem amontoados. Acredita que, desta forma, ela evitava a solidão, pois seu pai ia somente nos finais de semana. O lado positivo dessa reunião de parentes, é que facilitava a preparação de outros alimentos, como os mandolates, sucos e pães, confeccionados previamente sob a coordenação de sua avó, junto a sua mãe e tias.
Essas lembranças a fortalecem até hoje, e sabe que tenta repetir com seus filhos e netos, embora com menos trabalho e mais conforto, as mesmas emoções e momentos de prazer como daquela época.
Nesse período de dezembro, também ocorriam as festividades de Natal e Ano Novo. Eram momentos sonhados e aguardados com muita ansiedade pelas comemorações, presentes e reuniões familiares. As trocas de mensagens e afetos uniam a grande família, que apesar dos altos e baixos, mantinham vínculos afetivos indissolúveis, valores que ela aprendeu muito bem.
Existe um princípio psicológico que diz que o indivíduo se constitui na medida em que pode dar forma mental e significado autêntico ao que vive e ao que sonha, sendo isso uma condição para ele existir, para construir o seu eu.
Com certeza, a Sra. B. ao falar de seus desafios, prazeres, sonhos e vínculos familiares, ricos em sentidos e significados, com seus mais puros sentimentos, está informando sobre si, da pessoa que se tornou, de como iniciou seu futuro desde a infância, e em que se alicerçou para percorrer as fases seguintes de seu desenvolvimento.
Ela entendeu que valorizar a própria história é descobrir e acreditar no próprio poder e é isso que a coloca como pessoa no mundo. Valorizar suas realizações é alimentar a esperança de que pode fazer muito mais e, quem tem esperança age, é alguém que acredita no encontro empático que o viver oportuniza consigo mesmo e com o outro.
Seguiremos no próximo mês.